sábado, 12 de setembro de 2009

Desvendando a concordata, parte II: artigos 1o a 7o

Este é o segundo texto da série Desvendando a concordata, que se refere ao acordo assinado entre o Brasil e a Sé de Roma em 2008. No primeiro artigo, abordamos apenas o título e as disposições iniciais, mas mesmo essas primeiras linhas são prolíficas o suficiente para que se institua, por exemplo, que a concordata se baseia em disposições que atentam violentamente contra a liberdade religiosa, como a instrução de batizar crianças mesmo contra a vontade dos pais.

Os artigos 1o a 7o pertencem a dois blocos diferentes: do primeiro ao quarto artigo tem-se uma série de determinações pouco polêmicas, e a partir do artigo quinto começa uma série de disposições que estabelecem privilégios à Igreja Católica, a maior parte deles em detrimento de todos os demais cultos.

Os artigos 1o, 2o e 3o da concordata provavelmente são os únicos que fazem jus à ideia de "reforço" da legislação existente, pois em linhas gerais apenas se referem a situações existentes, sem alterá-las. Cabe destaque aqui para o art. 3o, em que "A República Federativa do Brasil reafirma a personalidade jurídica da Igreja Católica". Ora, se reafirma é porque a personalidade jurídica da Igreja Católica já foi afirmada, o que de fato acontece em nosso Código Civil, e por isso o título oficial de "Estatuto jurídico da Igreja Católica" é enganoso (vide Fatos e Mitos sobre a concordata e Desvendando a concordata, parte I: título e disposições iniciais).

Mesmo os itens menos problemáticos do texto têm potencial para gerar grandes dificuldades internas ao país. Embora os artigos 1o a 3o estejam de acordo com a legislação brasileira atual, sua existência impede mudanças futuras, que deveriam ser decididas soberanamente pelo legislativo brasileiro. Mas uma eventual ratificação da concordata impedirá qualquer mudança a respeiro dos temas da concordata em nossas leis, que ficarão submetida à vontade de uma instituição estrangeira, condicionando a vida de cidadãos brasileiros em solo brasileiro. Como bem apontou a pesquisadora Roseli Fischmann, se o Congresso ratificar a concordata, estará para sempre abdicando de seu poder de legislar sobre matérias de interesse nacional.

O artigo quarto é um dos mais curiosos do documento, pois é o único que estabelece um dever claro à Sé de Roma, e talvez por isso mesmo tenha sido incluído, pois de outra forma não haveria bilateralidade de obrigações. Afinal, em todo o restante do texto, é o Brasil quem cede direitos e arca com deveres. Mas nem isso salva o texto do artigo, em que se lê: "A Santa Sé declara que nenhuma circunscrição eclesiástica do Brasil dependerá de Bispo cuja sede esteja fixada em território estrangeiro."

Ora, essa é uma matéria interna da Igreja católica. Não poderia importar menos ao Estado onde está a sede de qualquer bispo. O que ainda não se apontou em nenhuma análise até o momento é que esse é talvez um dos artigos que mais claramente viola a laicidade do Estado brasileiro, pois não cabe a Estado laicos legislar sobre como se organizam cultos e Igrejas. Não deixa de ser bastante curioso que mesmo assim a própria Igreja Católica defenda que o acordo não viola a seperação entre Igreja e Estado, apesar de a disposição ser bastante secundária e claramente não lhe ser prejudicial. Parece ser um preço muito, muito pequeno a se pagar pelos verdadeiros privilégios demarcados nos artigos seguintes, ainda mais porque certamente a iniciativa do artigo partiu da própria Igreja Católica. Mas não deixa de ser extrememente grave que a sociedade, o Congresso, o executivo e a própria Igreja tenham vendido tão barato a liberdade religiosa plena.

Basta pensar que no futuro a Igreja Católica pode mudar de idéia sobre as sedes de seus bispos. Para efetuar qualquer mudança, ela dependerá da anuência do governo feredral, e nesse caso a Igreja, com toda justiça, iria apontar que sua liberdade religiosa está sendo cerceada pelo Estado. É exatamente por isso que o Estado não pode se imiscuir nos assuntos internos dos cultos, nem mesmo a seu pedido, e é por isso que a concordata, como um todo, é inconstitucional.

Depois do art. 4o começa um tipo bastante diferente de disposições, distintamente afirmando ou expandindo direitos e privilégios que não aparecem na legislação brasileira corrente. O art. 5o, por exemplo, institui que

"As pessoas jurídicas eclesiásticas, reconhecidas nos termos do Artigo 3º, que, além de fins religiosos, persigam fins de assistência e solidariedade social, desenvolverão a própria atividade e gozarão de todos os direitos, imunidades, isenções e benefícios atribuídos às entidades com fins de natureza semelhante previstos no ordenamento jurídico brasileiro, desde que observados os requisitos e obrigações exigidos pela legislação brasileira."

Como acontece muitas vezes ao longo do acordo, esse artigo estabelece privilégios exclusivos à Igreja Católica, e desta vez de maneira furtiva pois as pessoas jurídicas eclesiásticas do art. 3o são apenas as ligadas à Sé de Roma. Mas o problema vai mais além. A maneira mais fácil de entender o que há de errado com esse artigo é pensar no antigo conceito racista de que uma única "gota de sangue" negro ou judeu em uma árvore genealógica contamina irremediavelmente a "pureza" de um indivíduo. O art. 5o da concordata age de maneira contrária, instituindo que uma única gota de assistência e solidariedade social exercida por instituições católicas as eleva à pureza plena de entidades plenamente beneficentes, conferindo-lhes todos os direitos, imunidades, isenções e benefícios de que elas gozam.

Em outras palavras, a distribuição de um único prato de sopa por ano será suficiente para que o Estado forneça subsídios e benefícios a iniciativas de evangelização e todas as demais atividades religiosas que nada têm a ver com fins de beneficência e bem-estar público, e contemplam apenas os interesses privados da Igreja Católica, com o financiamento estatal de fiéis de todos os credos.

O art. 6o institui uma via ainda mais ampla de transferência de recursos públicos para os fins particulares da Igreja Católica:

"As Altas Partes [Brasil e Igreja Católica] reconhecem que o patrimônio histórico, artístico e cultural da Igreja Católica, assim como os documentos custodiados nos seus arquivos e bibliotecas, constituem parte relevante do patrimônio cultural brasileiro, e continuarão a cooperar para salvaguardar, valorizar e promover a fruição dos bens, móveis e imóveis, de propriedade da Igreja Católica ou de outras pessoas jurídicas eclesiásticas, que sejam considerados pelo Brasil como parte de seu patrimônio cultural e artístico."

Esse artigo possui duas partes distintas: na primeira, declara-se que o patrimônio "histórico, artístico e cultural da Igreja Católica" é "parte relevante" do patrimônio cultural brasileiro. Essa afirmação em si já encerra dois problemas graves, pois ignora solenemente todo o patrimônio dos demais credos (muitos dos quais são legitimamente brasileiros, ao contrário da Igreja Católica). Essa é uma declaração flagrantemente discriminadora contra todos os demais grupos religiosos, que ficam relegados por lei a um papel secundário. Além disso, embora possa não parecer, o artigo protege indiscriminadamente todo o patrimônio da Igreja, sem exceções. Afinal de contas, o patrimônio que for recente demais para ser histórico ou comum demais para ser artístico não poderá deixar de ser "patrimônio cultural", pois tudo que for relativo à religião faz parte da cultura.

Esse artigo não se trata, portanto, de proteger bens legitimamente históricos, artísticos e culturais, afinal de contas o Estado já tem órgãos específicos para isso. Esse é o caso do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, criado para definir que bens realmente são parte de nosso patrimônio histórico, uma decisão difícil que envolve avaliações multidisciplinares complexas. Mas o art. 6o da concordata passa por cima da autoridade do IPHAN, ignora todos os critérios técnicos que devem guiar as decisões envolvidas e determina literalmente por decreto que o patrimônio da Igreja Católica, qualquer que seja, é relevante -- e ponto.

Essa valorização acentuada e generalizada já constitui privilégio importante, mas o artigo vai além: ele carrega um pesado ônus financeiro -- para os cofres públicos, é claro. A segunda parte do artigo determina que o Estado deverá "salvaguardar, valorizar e promover a fruição dos bens, móveis e imóveis, de propriedade da Igreja Católica". Como acontece diversas vezes ao longo do texto, fica aberto à interpretação o que exatamente implicam eses verbos, e essa interpretação será guiada pela própria parte interessada, que é a Igreja Católica, segundo o art. 19 do acordo. Mas não há dúvida de que salvaguardar, valorizar e promover fruição de bens contempla não só a criação de novos privilégios como a transferência de despesas próprias da Igreja Católica ao coletivo da população. Este artigo é provavelmente aquele em que se configura de maneira mais clara a apropriação do Estado brasileiro pelos interesses particulares da Igreja Católica.

É verdade que o caput faz uma referência a "outras pessoas jurídicas eclesiásticas que sejam considerados pelo Brasil como parte de seu patrimônio cultural e artístico", que parece igualar as condições dos outros credos às da Igreja. No entanto, o trecho é inócuo pois as demais pessoas jurídicas continarão tendo que passar pelos mesmos trâmites legais que todas as instituições da sociedade civil para ter seus bens incluídos no patrimônio histórico, como sempre aconteceu. Enquanto isso, acima de todos os mortais comuns, a totalidade dos bens da Igreja Católica fica protegida e financiada pela concordata, com enganadora aparência de equitatividade. O parágrafo 1o deixa a proteção mais clara, ao estabelecer que

"§ 1º. A República Federativa do Brasil, em atenção ao princípio da cooperação, reconhece que a finalidade própria dos bens eclesiásticos mencionados no caput deste artigo deve ser salvaguardada pelo ordenamento jurídico brasileiro, sem prejuízo de outras finalidades que possam surgir da sua natureza cultural."

O trecho deixa patente que "salvaguardar, valorizar e promover fruição de bens" inclui privilégios legais -- mais uma vez, só para a Igreja Católica. O parágrafo seguinte tem um teor bastante diferente dos anteriores:

"§ 2º. A Igreja Católica, ciente do valor do seu patrimônio cultural, compromete-se a facilitar o acesso a ele para todos os que o queiram conhecer e estudar, salvaguardadas as suas finalidades religiosas e as exigências de sua proteção e da tutela dos arquivos."
O fato de a Igreja se "comprometer" parece indicar a existência de um dever, mas isso é apenas efeito de uma redação inteligente. O que existe nesse patágrafo nada mais é do que uma reafirmação dos próprios interesses da Igreja de divulgar e fazer conhecidos seu patrimônio e seu ideário. Ao mesmo tempo, a Igreja Católica se exime de qualquer ação objetiva, pois o compromisso de "facilitar" o acesso é tão vago que não implica nenhum dever concreto.

Por fim, o artigo 7o, mais uma vez, faz declarações que expandem, só para a Igreja Católica, os direitos que a legislação brasileira dá a todas as confissões religiosas.

"A República Federativa do Brasil assegura, nos termos do seu ordenamento jurídico, as medidas necessárias para garantir a proteção dos lugares de culto da Igreja Católica e de suas liturgias, símbolos, imagens e objetos cultuais, contra toda forma de violação, desrespeito e uso ilegítimo.
A Constituição Federal está longe de conceder essa ampla gama de proteções, pois o inciso VI do art. 5o da CF afirma apenas que "é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias". O que constitui violação? O que significa desrespeito ou uso ilegítimo? O documento não esclarece, e como a sua interpretação depende da própria parte interessada, só podemos esperar que esses significados sejam os mais amplos possíveis, invadindo a liberdade de expressão da sociedade tanto quanto a Igreja o deseje.

Existem diversos exemplos de publicações e obras de arte que já sofreram censura ou tentativa de censura pela Igreja Católica. No Brasil, os casos mais famosos envolveram a proibição de uma revista Playboy de 2008, por conter fotos de uma atriz com um terço, a proibição do filme Je vous salue, Marie, de Jean Luc Godard, e a suspensão da exposição Erotica, os sentidos da arte, que seria promovida pelo centro cultural do Banco do Brasil. Mas houve diversos casos menos conhecidos, como ações criminais contra artistas, cancelamento de linhas de moda, e tantos outros. É claro que com a aprovação da concordata, será praticamente ilimitado o poder da Igreja para censurar com eficiência e dentro da lei qualquer forma de expressão que lhe seja inconveniente -- mais um privilégio indevido e que a coloca claramente acima dos demais credos. Com o parágrafo primeiro do artigo 7o, ocorre o mesmo:


§ 1º. Nenhum edifício, dependência ou objeto afeto ao culto católico, observada a função social da propriedade e a legislação, pode ser demolido, ocupado, transportado, sujeito a obras ou destinado pelo Estado e entidades públicas a outro fim, salvo por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, nos termos da Constituição brasileira.

Desde quando as Igrejas católicas estão sendo sorrateiramente demolidas, suas sacristias ocupadas, seus incensórios transportados? Estaria a Igreja se preparando para uma nova revolução russa? Parece muito improvável. Está bem documentado o fato de que eventos semelhantes não raro acontecem com os terreiros de umbanda e candomblé, como vem acontecendo há séculos. Mas eles não mereceram a deferência de tal proteção da lei, ou mesmo da alegadamente igualitária concordata com a Sé de Roma.

Não se trata então de uma apólice de seguros contra o armagedon, mas de uma velada proteção aos símbolos e dependências de culto católico que foram entronizados nas repartições públicas brasileiras. Essa apropriação indébita do espaço público iniciou com o próprio surgimento do Estado brasileiro, como mais uma maneira de selar a aliança entre o Estado confessional e a Igreja com quem ele se confundia, impedindo os demais cultos e coagindo ativamente os cidadãos das demais confissões com negação de direitos e até mesmo com força bruta. Desde o fim do século dezenove a lei deixou de privilegiar qualquer culto, e aqueles símbolos e dependências religiosas no seio do Estado foram proscritos pela cláusula de laicidade do Estado. No entanto eles permaneceram, à margem da lei. A concordata surge, de novo e de novo, como um instrumento para aprofundar, legitimar ou retomar benesses de uma maneira que não se viu em tempo algum durante a República.

A sanha protecionista da Igreja Católica foi tão grande que os legisladores vaticanos deixaram até mesmo de eximir os símbolos e dependências de culto particulares, como os presentes em clubes, cemitérios, empresas e casas: todos estão incluídos na lei. Por mais absurdo que seja, o que reza a concordata é que até mesmo os donos de símbolos particulares não poderão dispor deles como bem entenderem: a Igreja afirma que não podem ser demolidos, ocupados ou transportados, e o Estado brasileiro imporá isso a todos os cidadãos por força de lei.

A solução para essa insanidade não é determinar uma interpretação mais branda, ao contrário do que dispõe o acordo, claramente e com todas as letras. O que se deve fazer, por esse e tantos outros motivos, é repelir esse absurdo jurídico que atenta contra os fundamentos mais básicos de nossa democracia. Não se pode esperar menos de cada um dos senadores da república brasileira, ao menos enquanto ela tem chance de permanecer legalmente laica.

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