domingo, 30 de agosto de 2009

Fatos e mitos sobre a concordata

1. Mito: trata-se apenas do 'estatuto jurídico' da Igreja Católica.

Fatos: as instituições religiosas já dispõem de instrumentos legais para regulamentação jurídica plena. Representantes da CNBB afirmaram que "o único reconhecimento de que dispomos é um decreto assinado em 7 de janeiro de 1890, portanto, logo após a Proclamação da República", o que é falso. Na redação instituída pela lei 10.825, de 22 de dezembro de 2003, o item IV do art. 44 das Disposições Gerais do Código Civil (lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002) estabelece que "São pessoas jurídicas de direito privado as organizações religiosas". Segundo o §1º, "São livres a criação, a organização, a estruturação interna e o funcionamento das organizações religiosas, sendo vedado ao poder público negar-lhes reconhecimento ou registro dos atos constitutivos e necessários ao seu funcionamento." Esses instrumentos dão estatuto jurídico não apenas à Igreja Católica mas a todas as confissões do país, e já são suficientes para regular os milhares de instituições religiosas brasileiras -- das menores às maiores, como as igrejas evangélicas que possuem milhões de membros --, e todas funcionam normalmente sem qualquer necessidade de legislação adicional. Ainda que houvesse um vácuo jurídico, o que não é o caso, ele deveria ser preenchido com leis que valem para todos. A legislação que tem validade exclusiva para algumas instituições não é legítima, pois é apenas uma instituição de privilégios: injusta, excludente e inconstitucional. Afinal, todos os cidadãos (e instituições) devem ser iguais perante a lei, que deve ser uma só.



2. Mito: a concordata não viola a laicidade do Estado.

Fatos: a bibliografia especializada aponta várias maneiras de definir o que é a
laicidade do Estado, e a concordata viola todas elas. Em essência, o Estado
laico é aquele perfeitamente neutro em matéria religiosa porque sua legitimidade
não provém de injunções teológicas, mas da soberania popular; como resultado,
erige-se o chamado muro de separação entre igrejas e Estado. Esse muro impede a interferência mútua entre Estado e religiões, garantindo a liberdade religiosa
plena. É fácil de perceber que o Estado não pode intervir em matéria religiosa,
pois qualquer instrução estatal fatalmente cerceará as práticas de algum grupo
-- seja diretamente, impedindo ou modificando as atividades religiosas, seja
indiretamente, apoiando este ou aquele de maneira diferenciada. Qualquer
distanciamento da neutralidade do Estado em matéria religiosa é uma violação da
laicidade estatal. De fato, o art. 19 da Constituição Federal veda relações de dependência ou aliança entre cultos religiosos ou Igrejas e o Estado. E tanto no sentido comum como no jargão jurídico, acordos estabelecem relações de dependência ou aliança: são partes que se aliam para estabelecer e regular relações e obrigações mútuas.
Nas palavras do presidente da CNBB, Dom Dimas Lara: "Não cabe à Igreja dizer como o estado deve funcionar e nem cabe ao estado dizer como a Igreja deve ser". E a concordata é exatamente um instrumento através do qual a Igreja Católica, através do seu órgão máximo que é a Sé de Roma, diz ao Estado como ele deve funcionar. Por isso ela viola a laicidade, de maneira clara e inequívoca.


3. Mito: a concordata não dá privilégios à Igreja Católica

Fatos:
qualquer direito que o Estado conceda a uma ou mais religiões além daqueles previstos na Constituição é um privilégio indevido, pois ocorre às custas da violação da laicidade do Estado. Diversos artigos não apenas instituem tais privilégios, e alguns deles não são estendidos às demais confissões religiosas. Alguns exemplos: o art. 5o concede status de entidades de cunho social à Igreja católica, mas não aos demais grupos religiosos; o art. 6o obriga o Estado brasileiro a colaborar na manutenção do patrimônio da Igreja Católica, mas não dos demais grupos religiosos; o art. 7o protege a liturgia e símbolos católicos, mas não os demais grupos; o art. 8o reconhece o direito da Igreja Católica a prestar assistência religiosa, mas não dos demais grupos; o art. 12 concede direitos sobre o matrimônio somente à Igreja Católica; o art. 16 libera somente os sacerdotes católicos de vínculo empregatício; o art. 17 concede direitos especiais somente a bispos católicos; os art.s 18 e 19 concedem direitos adicionais somente à Sé de Roma e à CNBB; o art. 20 ratifica acordo anterior que estabelece somente assistência religiosa católica nas forças armadas.


4. Mito: a concordata não traz novidades, apenas reforça a legislação existente.
Fatos: Mesmo quando o acordo aponta para elementos existentes na legislação, ele o faz de maneira discriminadora. Por exemplo, o art. 2o reafirma um direito constitucional que é o de desempenhar a missão apostólica. No entanto, ele só trata do direito da Igreja Católica, preterindo todas as demais instituições religiosas. Isso fere o princípio fundamental da igualdade entre credos perante a lei.

Se esse mito fosse verdadeiro, ele já desmentiria o mito número 1, segundo o qual a concordata estabelece o estatuto jurídico da Igreja Católica. Para que o acordo crie estatuto jurídico antes inexistente, ele deve conter novidade. Se não traz novidade, como pode introduzir o estatuto jurídico da igreja, ou ter qualquer outra utilidade? Por que haveria tanto empenho na aprovação do projeto, incluindo tramitação em urgência urgentíssima, se o documento é perfeitamente redundante? O fato é que não apenas há muitas novidades, como algumas delas contradizem claramente o ordenamento jurídico existente. Os partidários da concordata poderiam acabar com toda oposição de maneira rápida e definitiva se exibissem, para todos os artigos do acordo, a legislação brasileira existente que esses artigos "reforçam". Essa legislação não foi exibida e não será, simplesmente porque não existe.

5. Mito: a concordata não contradiz a legislação brasileira, mas a reafirma.

Fatos: a legislação brasileira é democrática e se baseia, entre outros, no princípio da igualdade e na discussão plural de idéias. A Sé de Roma encabeça uma instituição teocrática de governantes vitalícios exclusivamente masculinos que se orienta pelo direito canônico, de justificativa teológica. Seria surpreendente se duas entidades tão diversas não entrassem em contradição, como de fato entram. Além de a simples existência do acordo violar nossa lei maior (vide mito 1), diversos artigos contradizem a legislação existente. Um dos casos mais claros de afronta à legislação nacional, que ensejou ressalva no relatório da Comissão de Educação da Câmara, é o do artigo 11 da concordata, onde se estabelece ensino religioso "católico e de outras confissões religiosas". Isso contraria a redação dada pela lei 9.475, de 22.7.1997, à Lei de Diretrizes e Bases (lei 9.394 de 20.12.1996), que veda "quaisquer formas de proselitismo". Se o ensino é católico, então é necessariamente confessional e proselitista, como é prontamente reconhecido pelos representantes da CNBB. Portanto, a concordata institui não apenas acréscimo como negação da lei brasileira. As afirmações de conformidade com a legislação brasileira no texto da concordata também não resolvem o problema. O art. 11, por exemplo, alega que suas determinações devem acontecer "em conformidade com a Constituição e as outras leis vigentes, sem qualquer forma de discriminação", mas isso é uma impossibilidade lógica pois ele está em contradição com a lei vigente: ou se cumpre o acordo, ou se cumpre a lei vigente. Ademais, diversos dispositivos, entre os quais os mais polêmicos, não por acaso se omitem quanto à conformidade à lei brasileira, como é o caso dos artigos 6 e 14.

6. Mito: a concordata abre caminho para outros grupos religiosos pleitearem acordos semelhantes.
Fatos: esse mito contradiz o mito de que o acordo não traz nenhum benefício específico à Igreja Católica. Se o acordo não traz benefícios só aos católicos, por que outros grupos desejariam assinar acordos semelhantes? A verdade é que nenhum outro grupo religioso tem personalidade jurídica para assinar acordos internacionais, especialmente sem passar por discussão com toda a sociedade e sem poderem ser encerrados no futuro pelo legislativo, como se dá com a concordata.

7. Mito: o Estado é laico, mas o povo é religioso.
Fatos: a afirmação é verdadeira, mas não serve como justificativa para dar legitimidade ao acordo, pois quem o assina é o Estado, não o povo. O mito é o de que isso justificaria partidarismo religioso por parte do Estado, o que é falso. Estados laicos existem exatamente para garantir a liberdade religiosa do povo, com igualdade plena, a salvo do viés e da interferência de religiosidades particulares: sem sectarismo, sem distinções e sem preferências de qualquer tipo.

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