O arcebispo afirma, por exemplo, que
"Sem clareza jurídica a liberdade religiosa fica fragilizada e até exposta a arbitrariedades e constrangimentos."No entanto, não se indica onde ou por que faltaria clareza jurídica nem que fragilidades, arbitrariedades e constrangimentos são esses. É verdade que, no Brasil, minorias religiosas sempre sofreram discriminação. Por exemplo, ainda hoje os sacerdotes de cultos afro-brasileiros têm dificuldade para entrar em hospitais e prestar assistência religiosa. E somente sacerdotes católicos e evangélicos estão instalados nas capelanias militares, excluindo todos os demais grupos. O fato é que a Igreja Católica e seus fiéis jamais tiveram sua liberdade religiosa fragilizada no pais, e que portanto não há nenhum artigo na concordata que tente remediar esse problema inexistente. Segundo Scherer,
"o Estado laico também fica de mãos atadas, sem saber como proceder quando a liberdade religiosa é invocada como pretexto para cometer ilícitos e explorar economicamente, em função de lucro privado, as necessidades e sentimentos religiosos do povo. Como coibir, por exemplo, o charlatanismo e a exploração da boa-fé do povo? Como levar à Justiça o infrator que lesa a população e o Estado, se ele pode sempre apelar para uma liberdade religiosa vaga e mal interpretada? É a essa clareza jurídica que o Acordo visa, no que se refere à Igreja Católica, que tem na Santa Sé o seu representante e interlocutor com os Estados, na esfera do Direito Internacional.
A concordata também não trata desses pontos, de maneira que isso não constitui argumento em favor de sua assinatura. Não há absolutamente nada nos vinte artigos do acordo que estabeleça como tratar do problema do charlartanismo e da exploração da fé.
O arcebispo nao deixa de lembrar que
"A diplomacia da Santa Sé tem uma praxe longa e consolidada de acordos, tratados, concordatas ou convênios com muitos países; são instrumentos reconhecidos do Direito Internacional, por meio dos quais a Igreja Católica, em entendimento com os Estados, clareia o modo de sua presença e atuação nesses países, e também sua contribuição às sociedades locais, em benefício da população. Esses tratados são estabelecidos pela Santa Sé com numerosos países, e não apenas com nações de maioria católica ou cristã, mas também onde os católicos são pequena minoria, como Israel, ou países de predominância islâmica, como a Tunísia e o Marrocos. Mas também com Estados declaradamente laicos."
Sim, mas o fato de uma coisa ser comum não significa que seja boa, nem que seja legal. Esse argumento constitui uma falácia chamada ad populum, que o arcebispo só utiliza quando lhe convém. Por exemplo, muitos países não criminalizam o aborto, mas o arcebispo entende que isso não é motivo para que sigamos esse modelo. E ele tem razão! Devemos julgar um ato por sua correção, nao por sua popularidade. E esse critério também e válido para a concordata, de maneira que os dados que ele reporta em nada legitimam o acordo com a Sé de Roma.
Para Scherer,
"O Acordo não pretende privilégios para a Igreja Católica, mas a segurança jurídica, como garantia efetiva do exercício da liberdade religiosa. Dessa clareza também faz parte a própria organização interna, que pode ser muito diversa de uma religião para outra: quem é quem dentro delas, quem as representa e é seu legítimo interlocutor com a sociedade. Essa clareza interna, por certo, não falta à Igreja Católica, que a expressa no seu Direito Canônico, antigo e público, e onde também ficam manifestos seus propósitos e sua metodologia de ação."
Ao contrario do que ele afirma, o acordo prevê claros privilégios para a Igreja Católica, como fica claro aqui. Quanto à organização interna dos cultos e igrejas, isso não é matéria para a legislação brasileira, que deve apenas garantir a liberdade religiosa, como já faz. E se a Igreja Católica ja tem essa "clareza interna", isso não e motivo para criar um acordo com força de lei. Segundo o arcebispo,
"Não faltaram questionamentos e argumentações contrárias, antes que se chegasse à ratificação do Acordo na Câmara."Sim, houve muitos questionamentos e argumentações contrárias, mas apesar do comportamento dos partidários da concordata, não por causa deles. E esse questionamento não foi veiculado à sociedade devido ao boicote da mídia. Para comecar, o acordo circulou em segredo durante anos nos corredores do Itamaraty, do palácio do planalto e de diversos ministérios, sem que a sociedade tivesse qualquer acesso a eles. Os termos exatos só vieram à tona depois que o documento já tinha sido assinado, e não havia sido divulgada sequer a intenção de assinatura de um tratado quando o presidente foi ao Vaticano. Depois disso, a Igreja e os partidários do acordo fizeram toda pressão possível para acelerar a tramitação ao máximo e impedir ate as audiencias publicas. O relator da materia na CREDN, por exemplo, só recebeu dois grupos: a CNBB e a ATEA. Nao foi consultada nenhuma entidade representativa na sociedade civil, apesar de a comissão ter recebido, através da ATEA, contundentes protestos por escrito de mais de um grupo religioso e arreligioso. A CCJ da Câmara, cujo parecer seria um dos mais importantes, sequer teve tempo de discutir a materia internamente de maneira adequada.
"Argumentou-se com veemência, por exemplo, que o Acordo feria a Constituição, enquanto houve todo o cuidado em respeitar a Lei Maior e a restante legislação brasileira. Tentou-se negar a legitimidade do Acordo, com a alegação de que o Brasil é um Estado laico
Com ou sem esse cuidado, o acordo não preserva a laicidade do Estado. Ele é inconstitucional e fere tambem legislação infraconstitucional, como mostramos aqui.
"no entanto, acordos dessa natureza partem, justamente, da aceitação da laicidade do Estado e confirmam esse princípio; por essa razão é que a Santa Sé busca formas 'concordadas' de relacionamento da Igreja com Estados não religiosos e sem religião oficial."
Mais uma vez, o arcebispo não produz nenhuma evidência de sua afirmacão de que o acordo vem da aceitação da laicidade. Laicidade estatal significa separação entre a condução do Estado e a vida religiosa na sociedade civil. A concordata faz exatamente o contrário, estipulando ao Estado obrigações de ordem e interesse religioso. O fato de um determinado governante ter concordado com os termos do acordo nao significa que eles sejam legais ou constitucionais: o governante pode estar equivocado, e/ou ter interesses políticos na aprovação do documento.
"Houve também conclusões equivocadas de que a Igreja Católica voltaria a ser a religião oficial no Brasil, que ela imporia seu ensino religioso a todos os alunos das escolas públicas e pretendia a isenção das leis trabalhistas. Tudo infundado, era só ler com isenção os termos do Acordo."
Aqui o arcebispo está coberto de razão: o acordo nao reinstitui o catolicismo como religião oficial, não impõe ensino religioso católico a todos os alunos das escolas publicas, nem pretende isenção completa de leis trabalhistas. O que o acordo faz é reinstituir privilégios que a Igreja Católica só tinha quando era religião oficial, impor o oferecimento de ensino católico as escolas publicas e isentar a Igreja Católica de ônus trabalhistas para com todos os seus sacerdotes.
"Houve ainda alertas e até acusações de que a Igreja Católica buscava privilégios, discriminando outros grupos religiosos. Também isso é inconsistente, pois o mesmo direito de pleitear instrumentos jurídicos concordados com o Estado estava igualmente assegurado aos demais grupos religiosos, bastando que se organizassem. E seria bom assim; nada melhor, no Estado laico, do que a clareza nas relações da religião com a sociedade."
Nesse trecho, Scherer acaba por se contradizer, pois só há necessidade de outros grupos se organizarem caso o acordo conceda privilégios à Igreja Católica. Do contrário, não haveria nenhum "instrumento jurídico" a pleitear. O que o representante da Igreja Católica acaba deixando claro é que os demais grupos religiosos vão precisar "correr atras do prejuízo" se desejarem igualdade de tratamento. E ainad assim a igualdade não virá por dois motivos: primeiro porque nenhum outro grupo religioso possui um Estado com que possa assinar instrumento jurídico semelhante; e segundo porque de um jeito ou de outro os sem-religião, que constituem cerca de 8% da população, continuarão à margem desses privilégios, tendo o dinheiro dos seus impostos utilizados para financiar a ideologia alheia.
"O fato é que, uma vez aprovado, o texto foi proposto logo, quase ipsis litteris, num projeto de 'Lei Geral das Religiões' e aprovado na mesma hora, sem discussão nem convocação de audiências públicas. Aquilo que antes fora considerado inaceitável, absurdo e contrário aos interesses do povo, incompatível com o Estado laico, deixou de sê-lo num piscar de olhos. Terá sido pelo adiantado da hora daquela sessão extraordinária noturna?
O argumento de Scherer não faz sentido porque os deputados que se opuseram ao acordo com a Sé de Roma foram os mesmos que se opuseram a 'lei das religioes', notadamente André Zacharow, Dr. Rosinha, Takayama e Pedro Ribeiro. Se houve alguma mudanca de lado, foram bem poucas.
"O Estado, por certo, continua laico e pode celebrar acordos e entendimentos com quem quer que seja, no respeito às suas próprias leis. No entanto, ao passar para uma legislação geral organizações tão diversas como as religiões, será que não houve um cochilo longo demais? Na Roma antiga, neste caso, a recomendação aos homens ilustres do Senado, provavelmente, teria sido esta: 'Videant consules'."
Se um documento é cópia do outro, não há como justificar que o acordo que concede privilégios à Igreja Católica seja válido enquanto a lei que estabelece os mesmos privilégios aos demais grupos religiosos (mas jamais aos sem-religião) seja um "cochilo". Scherer insta os demais grupos a buscarem instrumentos de mesmo efeito, mas esses instrumentos viram realidade, ele os critica, deixando claro que o discurso de igualdade é só para inglês ver.
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